Poesias premiadas revelam e confirmam talentos da literatura em MS
Textos que saíram de cabeças, idades e realidades sociais diferentes, porém criativos e singulares, únicos para cada inspiração. A educadora, o artista, o ativista, a operária – enfim, uma composição plural de gêneros e de ocupações adornou na noite de quinta-feira, 24, na premiação aos 10 primeiros colocados no Concurso de Poesias “Oliva Enciso”. Promovido pela ASL (Academia Sul-Mato-Grossense de Letras), com a parceria da Setesc – Secretaria de Estado de Turismo, Desporto e Cultura (através da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul – FCMS), o concurso foi instituído em 2012 para ampliar os canais de fortalecimento cultural, com incentivo à produção autoral.
Os autores e autoras receberam certificados de participação. Os três primeiros classificados ganharam também prêmios em dinheiro nos valores de R$ 3.000,00, R$ 2.000,00 e R$ 1.000,00. A poesia vencedora, “Padilhas e Mulambos”, é de Rayanne Jarcem de Oliveira. Em 2º lugar ficou “Aguada”, de Márcia Regina Scherer; e em 3º, “A Parte que Falta”, de Ibelize Santos.

Completam a relação dos 10 vencedores – 4º lugar: Júlio Oliveira Costa, de Campo Grande (“Bixa-Terra”); 5º: Renata Boeira, de Dourados (“Hoje Escrevi Uma Matéria”); 6º: Angélica Cardoso Rodrigues, de Jardim (“Esperança”); 7º: Tácito Lourenço Batista, de Dourados (“Alvorada no Pantanal das Palavras”; 8º: Jurema Cristaldo, de Campo Grande (“Entre Dois Mundos”); 9º: Keyla Coelho, de Bandeirantes (“O Amor Respira por Aparelhos”); e 10º: Fabiano Baumgardt, de Campo Grande (“Nas Vielas do Presente”). À exceção de |Renata Boeira e Tácito Batista, todos se fizeram presentes.
As poesias e os prêmios foram declamados e entregues pelos imortais da ASL Henrique Medeiros, Fábio do Vale, Sylvia Cesco, Sérgio Cruz, Rubenio Marcelo e Elizabeth Fonseca. Os elogios à qualidade das poesias foram unânimes. Para os acadêmicos Marisa Serrano – que conduziu a apresentação – e Rubenio Marcelo, mais uma vez o concurso demonstrou sua importância no fomento, na resistência e na produção literária em Mato Grosso do Sul .
Acadêmicos, familiares e amigos dos participantes animaram a noite de premiações na sede da Academia. O presidente da ASL, Henrique de Medeiros, definiu o concurso como “um chamado aos talentos de todas as épocas, sobretudo para quem não teve sua obra contemplada com a justa visibilidade e quem, por timidez ou outro tipo de relutância, demora a colocar para fora sua capacidade de criação”.

1º
Padilhas e Mulambos
Rayanne Jarcem de Oliveira
Você achou que a carne negra era mais barata.
Ouviu na boca do açougue que devia levar, mas desconsiderou que era dura de engolir.
Começou a me fazer na panela errada, sem cuidado, sem dengo.
Nem lembrou que carne de África se faz com ervas e oração,
se faz com sal fino, com licença ancestral.
Ficou ensebando com coisas erradas, usou desamor, pitada de cinismo,
e o pacto de me fazer morrer.
Me pegou de qualquer jeito, não pensou em prato especial, cozinhou em banho maria.
Mas não contava que minhas Marias eram outras.
Eram Padilhas e Mulambos, era a família que reza meia noite na encruza
enquanto sai para trabalhar.
Maria que bota lingerie chique, batom vermelho e bate no peito da negritude que lateja.
Aqui ninguém nos mata de novo.
Mesmo que tenha quebrado meus ossos com saliva quente,
mesmo que separasse cada estilhaço para não mais juntar.
Esqueceram de te falar.
Carne preta se junta no faro.
Nossos ancestrais deixaram mapas em padês, tranças e sambas.
Veja bem. Juntei meus ossinhos na força das marés.
África me fez reexistir e nunca mais parar de dançar.
Hoje, quando escutar o ranger dos dentes por aí é o meu fantasma.
Minha carne preta é pó da noite.
Ela treme e se esparrama por todo lugar.

2º
Aguada
Marcia Regina Scherer
Houve um tempo em que as águas chegavam
Como num turbilhão de pensamentos
Inundavam
Mentes férteis, ora ocas, ora secas
Vertiam reflexões. Gotejavam
Nesse tempo água era que nem vida
Tinha gosto e cheiro d’alma
Transparente
Como brisa mansa
Gingando a rede com calma
Há de haver o tempo em que as águas voltarão
Caudalosas de riso frouxo
Arrastando morte e secura
Levando canoas para o longe
Afogando mágoas de quem se cura
Nesse tempo, eu rio
Caudalosamente
Em direção ao mar

3º
A parte que falta
Ibelize Santos
Surgiu de um sonho
Nasceu de um plano
Cresceu num redomo
Fez parte em nós
Encheu nossos anos
Teceu nossos nós
Faltou devagar
No meio da dor
Testada na sorte
Deixou-se vagar
Em tanto existir
Tornou-se banal
Morreu nos assuntos
Virou trivial
Largada num fundo
Talvez virou sobra
Juntada a outras tantas
Deixadas pra fora
Mas toda essa falta
Um dia deságua
Na face que escorre
A dor que se narra

4º
Bixa-terra
Julio Cezar Oliveira Costa
Sou raiz que teima em brotar na beira da cerca,
fruto que não coube no curral da norma.
Entre Pantanal e poste, danço com as mariposas
no cio da noite sem perdão.
Meu corpo é território em disputa,
que muito cedo fincou bandeira.
Não sou invasão. Sou retomada.
Minha pele guarda o barro dos que vieram antes.
Aqui, onde o cerrado arde devagar,
sou canto torto de passarinho sem gaiola.
Chamam de pecado o que é só flor em outra estação.
Não sou lenda urbana… Sou memória viva!
Nasci entre o sussurro das onças
e o grito calado dos guarani-kaiowá.
Sou bixa no sul do centro do mundo,
só isso já é revolução.
Os bois olham torto, o padre me nega,
mas minha reza é de tambor,
minha missa é no brejo,
meu evangelho é o beijo que dei escondido.
Sou o que não se ensina nos livros da escola,
mas se aprende quando o mato fala.
Se me apagarem daqui,
vou virar estrela, daquelas que orientam caminho.
Sou sul, mas nunca silêncio.
Sou brilho, mas também cicatriz.
E se me perguntarem de onde venho,
aponto o coração e digo: daqui.
5º
Hoje escrevi uma matéria
Renata Aparecida Boeira de Oliveira Costa
Hoje escrevi uma matéria sobre um poeta que faleceu faz tempo.
Ele está na minha tatuagem, nos bilhetes de amor,
em buquês de rosas, nas leituras dos solitários,
na pupila dos amantes que gozam juntos nas madrugadas.
No bater de portas dos casais que se despedem do afeto.
No sorriso das crianças e nas notícias que se esqueceram de ser boas.
Nas ruas, nos bares, nos copos dos pessimistas da vida.
Nos hospitais, nas delegacias e nos funerais que acontecem ao meio-dia.
Em ônibus, aviões, bicicletas, nos pés no chão.
Nos telefonemas de saudade, nas mensagens que morrem no orgulho.
Nas distâncias assinadas em contrato, na vontade guardada.
Na descrença total da felicidade ou na fé violenta pela vida — no amor.
Esse poeta me sussurra que continua vivo. E eu acredito.
Porque, em alguns momentos, eu posso abraçá-lo.

6º
Esperança
Angélica Cardoso Rodrigues
Ainda que o amargor do café lembre
o gosto cru dos dias sem cor, ainda
que o belo canto dos pássaros
se dissolva no lamento abafado do mundo,
ainda que o vapor das máquinas
se confunda com as densas nuvens,
ainda que as noites tempestuosas
não tragam apenas a chuva,
teus olhos de menina,
indomáveis como o primeiro desejo que não se diz,
me retêm na quina entre o ontem,
o agora e o incerto amanhã.
As linhas que se espalham como ramas no rosto,
tatuagens invisíveis do tempo invencível,
são trilhas de um mapa que só o viver decifra.
E mesmo quando eu despenque
num abismo voraz e silencioso,
como um castelo de cartas
derrubado pelo sopro impiedoso
de uma criança inquieta,
tu ainda me restas —
chama escandalosa que insiste
em pulsar em meu peito.
E por te ser,
me incendeio.
7º
Alvorada no Pantanal das Palavras
Tácito Loureiro da Silva Lourenço Baptista
Amanhece nas entranhas do barro úmido,
onde sílabas brotam como rebentos.
O tuiuiú de metáforas rasga o céu anil,
e o voo esculpe versos no ar denso.
O Paraguai, rio-caderno ancestral,
carrega folhas de histórias submersas —
cada onda, um verso sem adeus,
cada remanso, um ponto de reflexão.
O vento vira páginas do capim dourado,
libélulas grifam os hífens do tempo.
No lodo da memória, o passado acende:
peixe-espelho que na corrente se esvai.
Aqui, o poeta tece a trama do verbo,
arreando rimas soltas na vasta planície.
Sob os cascos do tempo, o silêncio fala:
raízes que bordam a língua da terra.
O sol, cururueiro de ouro incandescente,
pousa na copa vazia do cambará.
O gado das horas pasta a luz do verde-cálice,
rumina sonhos em tons de anil profundo.
O rio que transborda o leito estreito
é o mesmo que corre nas veias da escrita —
cantando a saga dos que dormem em versos,
sonhos que a terra guarda nas raízes.
Como o trovador das águas esquecidas,
minha voz busca o eco dos primeiros nomes:
palavras que o vento não apagou,
mas guardou nos sulcos do horizonte.
E à noite, quando o brejo entoa cânticos de vida,
e as raízes ascendem ao céu em espiral de essência,
o poema nasce: semente alada
que planta futuros no solo do agora.

8º
Entre Dois Mundos
Jurema Cabral Cristaldo
Nasci da mistura de tempos antigos,
do encontro forçado de histórias partidas,
trazendo na pele a dúvida eterna:
quem sou eu, se sou metade de tudo
e inteiro de nada?
Muito branca para ser preta,
muito preta para ser branca,
flutuando entre olhares que me julgam,
entre vozes que me nomeiam sem permissão.
“Morena jambo”, “cor de suja”,
tantos nomes, e nenhum que me caiba.
Na escola, no bairro, na vida,
não bastava existir, era preciso escolher.
Mas como se escolhe uma cor,
quando a pele muda com a luz?
Sou mais clara no inverno,
mais escura no verão,
o bastante para nunca ser suficiente.
Elogios que ferem:
“Cabelo bom, mas nem tanto”,
“Traços finos, que sorte”.
Meu reflexo é uma interrogação,
minha cor, uma incógnita.
Sou preta quando convém,
branca quando interessa,
mas nunca o bastante para ser qualquer uma.
Sou mistura que resiste,
sou a história em tom mestiço,
a dúvida que insiste em existir.

9º
O Amor Respira por Aparelhos
Keyla Alves Coelho
Há um soro invisível pingando no peito da gente,
remédios coloridos tentando curar o que é ausência.
As crianças trocam o chão de terra pela tela azul,
e esquecem como é sujar os joelhos de esperança.
Os olhos não se encontram, só deslizam…
dedos nervosos em telas frias, em conversas vazias.
Religiões de curtidas, orações por emojis,
e a fé… a fé, coitada, internada em estado terminal.
Lá fora, as sirenes tocam — não de ambulâncias,
mas de guerras travadas com palavras cortantes.
Aqui dentro, nas salas de estar, batalhas silenciosas:
casamentos esvaziados, filhos órfãos de pais vivos.
Cada notificação é um tiro de ansiedade,
e o café da manhã virou comprimido com água.
Nos noticiários, bombas; nos lares, silêncios.
O mundo inteiro respira, mas com ajuda de máquinas.
E o amor? Ah, o amor…
entubado, cercado de alertas vermelhos,
mantido vivo por um fio de memória,
esperando que alguém, um dia,
desligue o wi-fi…
se reconecte com a própria humanidade,
e descubra, enfim,
que o único recomeço possível
ainda pulsa…
ainda luta…
ainda resiste,
mesmo que respirando por aparelhos.

10º
Nas vielas do presente
Fabiano Rocha Baumgardt
Nas vielas do presente, onde as sombras altivas.
Se erguem, e a luz se esconde, pouco viva.
Um povo vagueia, perdido em revoltas internas,
Emaranhados em problemas e tramas tão ternas.
Caminham para um destino em nevoeiro envolto,
Na era da incerteza, onde o medo tem seu voto.
Erguem-se das cinzas do desespero, como as que padecem,
Buscando respostas em sonhos e anseios que se mexem.
Dos dias de desespero profundo, à falta de amor,
Da justiça cambaleante à moral sem fulgor.
Marcham, os heróis do presente, em estradas tortuosas,
Enfrentando desafios com bravura corajosa.
Das torres altas de marfim onde a ganância se revela,
Aos sombrios becos onde a miséria se acotovela,
Lutam e perseveram, em meio ao caos que os cerca,
Onde a esperança vacila, mas ainda se arqueja.
Nos anais da história, a narrativa se repete,
Injustiças e vidas entrelaçadas, história que se compete.
Em batalhas invisíveis, e em conquista sem som,
A humanidade prossegue, em sua jornada em tom.


e Sergio Cruz foram os acadêmicos que formaram a mesa oficial da cerimônia de premiação.