Antônio Torres discorre sobre literatura durante evento na ASL

Um dos mais laureados escritores do Brasil e titular da cadeira 23 na Academia Brasileira de Letras (ABL), o baiano Antônio Torres afirmou ter ficado muito feliz com a acolhida que teve em Mato Grosso do Sul. Ele foi o convidado especial do Chá Acadêmico de Maio, realizado quarta-feira, 29, na Academia Sul-Mato-Grossense de Letras (ASL). “Eu só posso louvar qualquer iniciativa que venha criar espaços não convencionais, aparentemente num universo não convencional, mas com ideias não convencionais, que fogem um pouco da regra. E que exige um capital de experiências, de esforços”, disse. E acrescentou, referindo-se ao alcance do evento: “A ideia está encontrando eco, encontrando seu espaço. Isto é muito importante. Estou aqui para colaborar com este processo”.

Na ocasião, Torres, 83, concedeu na ASL entrevista ao jornalista e escritor Edson Moraes.

Escritor Antônio Torres, imortal da ABL, palestrou na ASL

ANTÔNIO TORRES

(Imortal da Academia Brasileira de Letras)

por Edson Moraes, em 29/05/2024

PERGUNTA – Existe um processo de construção de mentalidade que impõe a cada um a responsabilidade de preservar suas origens e somar suas experiências com outras pessoas e outros lugares. Há processos específicos nas urbes e nas regiões mais afastadas. Quando você escreve suas obras – e eu tomo como ponto de partida a sua obra “Querida Cidade” – há uma transposição entre lugares e realidades que, em vez de se confrontarem, eles se somam nas suas diferenças. Como é possível na literatura transmitir isto numa linguagem acessível do jeito que você faz?

RESPOSTA – São 52 anos de literatura, sem contar os anos de jornalismo, de publicidade, de estrada, de botequim, de cidade em cidade, inclusive em outros países. Aos 24 anos fui de São Paulo para Portugal, morar e trabalhar com publicidade. Foi importantíssimo na minha formação. Os escritores que conheci lá eram publicitários, poetas. Enfim, é uma busca também; um andar pra frente sem perder a visão do que ficou pra trás. E de um confronto entre presente e passado, com a busca de uma pista para o futuro. Mas, olhe ─ meu camarada, meu caro colega, jornalista, escritor: primeiro, vi que você me leu direito. Isto me deixa muito feliz. Numa frase você me entendeu por inteiro. Vou sair daqui com a convicção de que basta esta entrevista para eu achar que ganhei esta viagem a Campo Grande.

P – Você fez “Querida Cidade” em quase 15 anos, verdade?

R – Em 12 anos.

P – Em 12 anos, são muitas as transformações. Como condensá-las e ampliá-las?

R – Foi assim: primeiro, tive um sonho. Sonhei que acordava no último andar de um edifício, o maior de uma cidade, que eu não sabia qual era, e cercada de água por todos os lados. Ao acordar, eu disse: “Opa! Enquanto dormia, escrevi um romance. Opa”! “Enquanto dormia, meu inconsciente me deu um romance!”. Pensei, pensei, até começar a engrenar… você sabe que tudo depende da primeira frase, palavra vai puxando palavra… e eu via e me via, via um homem e me via nele, com o seu reflexo…

P – …tinha um espelho, então…

R – …é, no espelho das águas. E que águas eram essas…?

P – A capa do livro?

R – É, a capa fui eu quem dei. Quando a editora me perguntou se eu tinha alguma ideia para a capa, eu disse: o reflexo de um homem no espelho das águas. E o capista fez isto primorosamente. E que águas são estas?  São as águas do tempo, esse tempo que vai passando. Como o personagem se sente um náufrago, ele se agarra a esse tempo para sobreviver dentro dessas águas, para não naufragar. Então, o romance foi se fazendo assim. Agora, o processo foi tão longo porque eu passava dias e dias com um parágrafo. Eu nunca me senti um escritor tão lento. No começo, esta lentidão me desesperava. Até eu passar a gostar. Aí, comecei a lembrar: quando era menino, vendo a minha mãe passar o pente fino nos cabelos das minhas irmãs para tirar as lêndeas, os piolhos. E aí eu disse: é isso que estou fazendo, é isso que quero fazer: tirar as lêndeas do texto.

P – Era uma lapidação.

R – Nessa lapidação, cabe perguntar: mas, quem se importa com isso? Com essa obstinação, essa procura tão alucinada?

P – Uma inquietude?

R – A inquietude, a busca da limpeza de um texto. E eu me respondia: “Certamente ninguém. Mas você, Antônio, tem que se importar. Porque isto é o que importa”.

P – Você se provocava.

R – É. Isto é o que importa. E aí eu fui muito lentamente, daí esta memória, história puxando história, história puxando história, até que no final do livro eu concluo – o que é o romance? Uma história cheia de histórias. É no que virou o “Querida Cidade”, uma história cheia de histórias. E eu tenho hoje uma súmula desse livro, e você agora acaba de trazer mais uma contribuição enorme, que me deixa encantado. Todo mundo vê uma coisa muito profunda nesse processo, uma coisa muito provocadora, enfim, todo mundo está lendo direito esse livro. Todo mundo, a que me refiro, são os poucos que já leram. Mas nesses poucos há um muito que me diz muitíssimo, que me agrada muitíssimo, me compensa enormemente por esses 12 anos de trabalho. É esta a compreensão que as pessoas estão tendo do processo de criação. Aquilo que eu dizia, que ninguém vai se importar com isto, com toda minha lentidão, ao final acabo descobrindo que eu estava enganado. Está havendo gente que está se importando com isso.

P – Você respondeu que, no momento que se dispôs, corajosamente, a passar tanto tempo buscando aprimorar um parágrafo, não era um aprimoramento técnico, de sintaxe, léxico, de concordância. Era de linguagem intimista, você estava procurando uma intimidade com quem fosse ler, lhe entender. A exegese do escritor é esta? Procurar se fazer entender por todos os leitores?

R – Não sei. Nunca acho que devo ter ou indicar modelos, pontificar sobre o processo da escrita. Fui escritor visitante da Universidade do Estado do Rio por seis anos, trabalhando com os alunos no processo criativo, fazendo oficinas literárias…

P – …e ganhou prêmios no Rio de Janeiro, num momento em que era difícil aceitar que um cara que veio lá do Nordeste, ganhar um prêmio aqui, na área cosmopolita, vindo lá do sertão…houve isso…

R – …é, eu ganhei vários prêmios no Rio, pelo conjunto de obras…

P – …logo que você chegou já ganhou prêmios, não foi?

R – Não, não. Meu primeiro prêmio foi no Rio, mas pelo romance “Balada da Infância Perdida”, que não foi o primeiro, já estava dado, que foi do Pen Club do Brasil, para o “Romance do Ano”. Depois, no Rio, eu ganhei o maior prêmio, o “Machado de Assis”, da Academia Brasileira de Letras. Nem sonhava ir para a Academia, não tinha pretensão. Não estava nos meus planos.

P – Chegamos num divisor, não de águas, mas numa pororoca, no encontro do mar com o rio. Você ganhou o Prêmio Machado de Assis, um escritor que se preocupava com a acessibilidade do leitor. Não só ao real, mas ao fictício também…

R – …dirigindo-se ao leitor …

P – …é, mas que tipo de contribuição isto dá para que a literatura, uma parte da cultura, esteja ao alcance de toda a sociedade, para que todas as pessoas sintam a necessidade e principalmente o direito e as condições que elas têm de acessar, de buscar, esclarecimento? No romance, na poesia, na prosa…

R – Você levanta questões realmente, digamos, transcendentais. Questões para as quais, sinceramente, eu não teria as respostas. Acho que é uma questão de sorte escrever um livro, uma página, um parágrafo, um conto, um romance, que este livro venha a bater com a sensibilidade do leitor. Não adianta até dizer para mim mesmo: “Eu vou fazer isto para ser entendido por todo mundo”. Não é por aí. Não posso fazer isso, tocar no coração de todo mundo. Acho que é o momento que você teve a sorte de achar a palavra, o personagem, o cenário, o instante, o tempo, a história …o leitor pega e se gruda nisso. Quando o escritor chega aí, ele está em estado de graça.

P – Concordo em parte, mas permita-me discordar. Quando você – tem 20 livros, mais ou menos…

R – …dezenove…

P – ..então, você vem para uma Academia de Letras, em 2024, o ambiente de acesso literário no País é diferente de 30 anos atrás. Hoje na ABL temos o Gilberto Gil, indígenas, negros…a ABL hoje é uma instituição que está mais perto da sociedade, se desentronizou, deixa de ser vista como aquele órgão majestoso, um panteon inacessível aos pobres mortais, e só dos intelectuais. A literatura tem compromisso aí, não sei se é sorte. Você trouxe seus 12 anos na elaboração de um parágrafo, valeu a pena por toda obra, independentemente de quantas pessoas conheçam. Quem leu vai falar às outras, efeito multiplicador. Desculpe por falar tudo isso.

  R – Não, estou encantado com suas observações. Uma leitura de uma profundidade, que faz a glória de qualquer escritor. Você tocou num ponto que leva a outra vertente. O quadro da literatura hoje está complicado, com dificuldades. O espaço da literatura está ficando muito reduzido.

P – Da boa literatura.

R – Da boa literatura. Primeiro, a desestabilização da imprensa escrita, a imprensa do papel, que nos dava uma grande sustentabilidade. Todos os jornais. Sou um escritor inventado pela crítica. Quando estreei, ninguém me conhecia – e chegaram a escrever isso no Globo. Ninguém sabia quem era esse cara, “embora seja meu amigo…” E isso de “embora seja”…

P – …o Otto Lara Rezende se não me engano, também dizia isso…

R – …é, foi uma coisa fantástica, toda imprensa nacional puxava por uma resenha do Agnaldo Silva. Na época ele era uma jornalista meio marginal, não era famoso como veio a se tornar, mas já tinha um nome na literatura, porque estreou como escritor (com o livro “Redenção Para Job”, da Editora do Autor) no Rio de Janeiro, publicado por uma editora do Fernando Sabino e Rubem Braga, que eram sócios. O livro foi lançado numa sexta-feira, na segunda-feira saiu o jornal “Opinião”, em São Paulo, com a resenha dele. E o título que ele deu foi: “Uivai com os cães”. E dizia, com todas as letras, que ali estava uma feliz estreia e que o autor era uma das maiores revelações e tal…E o Aguinaldo, com essa crítica, puxou todo os críticos do Brasil. Vieram todos atrás.

P – Ele foi a locomotiva?

R – Foi. Ao escrever isto. Eu era um dos desconhecidos. É como se fosse o livro certo na hora certa. É outra coisa que o escritor tem que dar sorte. É como o “Torto Arado”, (livro), do Itamar Vieira. Enfim, esta é uma luta. Carlos Drummond de Andrade já dizia: “Lutar com as palavras é a luta mais vã. Entanto lutamos mal rompe a manhã”.

P – Em Corumbá, tinha um fazendeiro, extraordinária figura, foi jornalista,

cronista, escritor. Foi do Partido Comunista. Era amigo de todo aquele pessoal da Semana da Arte Moderna de 2022. Participava de reunião na casa do Plinio Doyle, o Sabadoyle…

R – …eu fui lá uma vez…

P – Você foi?

R – Fui, o Drummond (Carlos Drummond de Andrade) ia…

P – …o Drummond, sim. Eu tenho um livro daquela reunião, “Encontros do Sabadoyle”. Mas eu lhe pergunto: como você avalia esta iniciativa da ASL, ao promover este recorte – não só literário, mas cultural -, de trazer a Academia Brasileira para uma Academia Estadual, e deixar que a sociedade se imponha pelo conhecimento da importância das obras?

R –  Eu só posso louvar qualquer iniciativa que venha criar espaços não convencionais, aparentemente num universo não convencional, mas com ideias não convencionais, que fogem um pouco da regra. E que exige um capital de experiências, de esforços. Noto que o poeta que conheci ontem, Henrique de Medeiros, está trabalhando muito neste projeto, vestindo a camisa. E o resultado de público (que possa estar presente à palestra) não sei, mas de divulgação é fantástico. Já tem visibilidade. É impossível que as pessoas não estejam tomando conhecimento de alguma maneira. Está divulgado. Está aí na capa de jornais, nas mídias sociais. Ele me mandou uma quantidade enorme de matérias. Só por isso já é indício que a ideia está encontrando eco, encontrando seu espaço. Isto é muito importante. Estou aqui para colaborar com este processo.