Os italianos vão saber como a natureza é sábia, como ela enfeita o Pantanal, como auxilia seus irmãos e também como se defende de seus agressores. É o que mostra o romance ecológico Tuiuiú, my brother, do acadêmico José Pedro Frazão, a ser traduzido e editado na Itália através de projeto universitário da pesquisadora italiana Francesca Faillare.
O livro novelesco, quase uma epopéia que celebra a aventura heróica protagonizada por um pequeno tuiuiú (ave símbolo do pantanal), mostra muito mais beleza e atrativos da flora e fauna pantaneiras, mas não se omite de denunciar as agressões humanas contra a natureza, inclusive tráfico de animais e o mau exemplo ecológico dos “brothers” norte-americanos.
Em apenas um dos capítulos a fábula foge propositalmente à linha do maravilhoso para narrar com detalhes uma bizarra e verossímil cena em que uma cobra sucuri devora um caçador.
Tuiuiú, my brother, o segundo livro do gênero do escritor José Pedro Frazão, foi editado em 2001 pela editora da Universidade Católica Dom Bosco/MS e será lançado em toda a Europa, iniciando pela Itália em 2006.
Em 2002, o livro foi colocado pela UCDB em circuito nacional abrangendo 180 universidades, inclusive universidades católicas de Portugal e Espanha, além de ter sido inscrito pela instituição para o prêmio Jabuti/RJ em 2003. O autor, que é membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras e que também escreveu o romance “Nas águas do Aquidauana eu andei”, com três edições, esteve recentemente no Paraná participando de debate sobre sua obra com alunos do curso de turismo. Frazão também está ultimando o romance “O filho do Padre Mário” – obra inédita prefaciada pelo escritor Viriato Moura, a ser lançada em Porto Velho, em parceria com a Academia Rondoniense de Letras.
Sobre o Tuiuiú my brother, a novidade é que o texto em italiano deverá mostrar a prosa sul-mato-grossense, as belezas ecológicas sob a ótica do imaginário pantaneiro em todo o território da Itália, no estado do Vaticano, na república de San Marino, parte da Suíça e na ilha francesa da Córsega, regiões onde o idioma italiano é mais falado. Segundo a professora Francesca Faillace, pesquisadora responsável pelo projeto, já existem editoras italianas interessadas nos direitos da obra de José Pedro Frazão, pois é grande o interesse de seu país pela literatura brasileira. Para ela, que veio ao Brasil em 2004 e está publicando sua monografia sobre o pantanal, através de intercâmbio universitário binacional, a nova edição de Tuiuiú, my brother poderá ser difundida, além da Itália. Em boa parte da Europa e também no continente americano, inclusive nos Estados Unidos, Canadá e Argentina, são numerosos os imigrantes italianos que ali se fixaram.
O escritor José Pedro Frazão disse estar muito contente e surpreso com a repercussão do seu trabalho fora do Estado e com o vôo internacional do “Tuiuiú”. Ele enfatizou que esse projeto de pesquisa da professora Francesca se antecipa à proposta de tradução americana do livro junto à Universidade Estadual do Texas e é bom porque o Italiano é uma língua neolatina, ou seja, deriva da evolução do latim vulgar, tal como o francês, o castelhano e o português. “O que era apenas um dialeto toscano florentino passou a ser chamado “italiano” e acabou tornando-se língua nacional graças à influência de Dante Alighieri, que lhe deu foro de língua literária através de sua famosa obra A Divina Comédia” – concluiu.
O forte apelo ecológico e o estilo narrativo de Tuiuiú my brother, que tem ilustração fotográfica de Sirnay Moro e arte de capa da artista Anelise Godoy, vêm chamando a atenção da crítica e, aos poucos, ganhando dimensão internacional. A primeira edição do romance está esgotada (restam apenas alguns exemplares no recanto Pantaneiríssimo, em Aquidauana) e a segunda edição, que seria destinada às escolas públicas, em projeto cultural sugerido pela então deputada Simone Tebet e elaborado pelo teatrólogo e acadêmico Paulo Correa de Oliveira, continua aguardando sinalização positiva do Fundo de Investimento Cultural de Mato Grosso do Sul – FIC/MS para 2006.
Enquanto aguarda a 2ª edição de Tuiuiú my brother, o leitor poderá encontrar exemplar da obra nas bibliotecas. Em Campo Grande, nas bibliotecas da UCDB, ASL e UNIDERP.
À guisa de curiosidade, publicamos – a seguir – um dos 21 capítulos deste romance da autoria do acadêmico J. P. Frazão:
Capítulo V
ABANDONADO NO NINHO
Numa tarde em que saíra para pescar lambaris no Rio Nioaque, o velho tuiuiú desapareceu para nunca mais voltar. O jovem filhote ficou uma semana sem comer, triste e pensativo. Não tinha forças nem para continuar a ginástica e exercitar suas asas, nem sabia qualquer notícia do pai. No galho da peúva, a solidão do abandonado causava dó. O tempo passava vagaroso como uma pena solta ao vento. Durante o dia, para se distrair, ele acompanhava o movimento dos pássaros gorjeando ao sol; à noite, conversava com a lua, que, no seu cortejo entre folhas e nuvens, iluminava aquele ninho órfão.
No fim da tarde, quando a boca da noite engolia lentamente o sol, o canto indolente de uma cigarra misturava-se ao zumbir das abelhas; um distante uivo do lobo guará cortava a mata, até confundir-se com o temível crocitar do gavião; e o insistente coaxar dos sapos vinham lá de baixo para dizer que o mundo não se acabara. O pensamento do jovem tuiuiú, indiferente a este barulho, planava longe, até evolar-se em reminiscências. Seu triste gazear evocava a presença do pai, procurando-o, em vão, pelas frestas do ninho. E de uma janelinha que fizera com o bico, corria os olhos em direção às árvores vizinhas. Perguntava em silêncio ao pé de cedro, à aroeira e a um florido ipê amarelo, se eles não sabiam onde estava o seu pai. Nem a primavera, portadora de tanta alegria, dava-lhe a boa-nova.
Se pelo menos soubesse voar, colocaria em prática todo o conhecimento recebido do seu genitor. Mas como não tinha essa habilidade, dava asas à sua imaginação e ficava pensando como sair dali, obter alimento e defender-se dos perigos da vida. Ouvira do pai, que aprender é viver; pensar é como voar; mas voar não é como pensar. Nesse aprendizado, concebeu a idéia de que acima do conhecimento está a imaginação – a mola propulsora da criação. E para sobreviver no pantanal é preciso ter intuição, conhecimento, instinto naturalista, e, sobretudo, muita imaginação.
O filhote se lembrava de todas as lições de vida ensinadas pelo pai. Mas havia um segredo que ele não teve tempo de aprender. O velho lhe prometera contar quando ele ficasse maior, pois se tratava de um assunto de vital importância para o pantanal. Uma fórmula mágica de defesa dos animais contra o homem opressor. A única arma com que poderiam derrotar o inimigo. Este segredo, porém, o pequeno não sabia, a menos que seu pai voltasse para revelar-lhe.
Mesmo com fome e muito fraco, o tuiuiú resolveu cumprir a sua aula de ginástica naquele dia, quando, de repente, ao escurecer, chegou uma Coruja, que se acomodou num galho acima do ninho e falou, com desdém:
– Vejam que disparate! Só porque é símbolo do pantanal, esse pirralho quer ser melhor que os outros. Não consegue nem mexer as asinhas, de tão mortiço. Quem quer ser diferente da própria natureza, não merece fazer parte do paraíso ecológico. Não sabes que a lei da selva é “cada macaco no seu galho”? – zombou o pássaro noturno, referindo-se ao esforço do tuiuiú em fazer ginástica.
– Lutar para aperfeiçoar o seu dom não significa deixar de aceitar a vida como ela é – devolveu o tuiuiú, seguro de que estava faminto de comida mas bem nutrido de seus ideais.
– Quero ver como vai se virar agora, sozinho. Beleza não enche barriga – escarneceu a coruja, desesperançada de jantar aquele esperto filhote.
Dizendo isso, a intrusa saiu em perseguição a um passarinho errante, para encher o papo. O privilegiado instinto do jovem tuiuiú começou a dizer-lhe que não poderia mais contar com o pai, que não viera dormir, deixando-o sozinho na noite fria, à mercê da própria sorte. Não sabia onde adquirir forças nem para salvar a própria pele, quanto mais para levar avante o plano do pai. Ele nem imaginava que o seu velho fora pego por caçadores humanos – os mais perigosos inimigos da floresta.
A impiedade e a ganância dos marginais não levaram em conta a fragilidade e a beleza do tuiuiú, nem a sua missão de cuidar do único filho, que já era órfão de mãe. Longe dali, numa feira clandestina de Campo Grande, o pai amargava a saudade de sua última cria, a quem tanto amava. Na solidão do cárcere, procurava entender a maldade humana, mas perdoava a ignorância dos caçadores que o venderam por algum mísero dinheiro. Em silêncio, rezava ao deus Pã invocando proteção para o tuiuiuzinho. Quanto à sua própria pena, dizia-se conformado com a triste sorte: perdera a esposa baleada, um filho foi devorado pela cobra e o outro estava prestes a morrer de fome, sozinho no ninho, porque os homens quebraram a corrente da sobrevivência sadia dos animais. O seu plano de transformar o herdeiro num supertuiuiú também tinha desabado, com a tirania dos homens, e o triste pai agora só rezava para que o pequeno abandonado sobrevivesse. Os caçadores estavam destruindo o sonho de uma inofensiva ave que só queria aperfeiçoar o vôo de sua raça e melhorar a imagem do pantanal.
Preso e vendido juntamente com outras aves, o tuiuiú foi confinado num quintal urbano, onde se tornou a maior atração visual do terreiro de uma pousada. Os bichos serviam para embelezar o ambiente e distrair pessoas, numa espécie de zoológico particular para turistas em trânsito. Nas esporádicas refeições, davam a ele pedaços de peixes congelados. Suas asas foram podadas para que não fugisse. Porém, o que mais lhe doía era a saudade do filho.
Certa feita, em pleno delírio de dor e angústia, bateu as asas do pensamento e teve uma visão esplêndida que o acalentou: ele viu o seu filhote bem adulto, forte e bonito, fazendo uma decolagem impecável, jamais realizada por nenhuma outra ave do pantanal. As imagens voavam em sua mente, mostrando-lhe o pequeno tuiuiú como o rei do espaço aéreo. Naquele instante, esboçou um sorriso de satisfação e desfaleceu de fraqueza, acreditando que deus Pã o tinha ouvido e certamente cuidaria de seu filho. Restava-lhe a convicção de que a natureza sempre cuida dos seus desvalidos. Sempre quando se via em dificuldades ou se lhe faltava algo, tuiuiú costumava dizer “Deus proverá”, e os seus objetivos sempre eram alcançados, milagrosamente, por força daquelas palavras.